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segunda-feira, 11 de junho de 2007

Inquisição: O santo inquérito

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 087/1967)


«Que dizer da peça de teatro ‘O Santo Inquérito’, da autoria de Dias Gomes

Como se explica, a presença da Inquisição no Brasil

7) «Que houve entre o Pe. Vieira e a Inquisição

A mencionada peça focaliza um episódio ocorrido em pleno séc. XVIII no Nordeste do Brasil: a heroína da cena, Dona Branca, é mulher simples, de fé pouco esclarecida; descendente de família judaica, tende a mesclar o Cristianismo com práticas religiosas israelitas. É então apreendida pelo tribunal da Inqui­sição, que se mostra pouco compreensivo para com a alma cândida de Dona Branca; esta representa a inocência de pessoas despretensiosas vítimas do fanatismo de homens mesquinhos.

A peça assim concebida redunda em uma crítica à Inqui­sição, ao clero e à própria Santa Igreja.

Poder-se-ia esclarecer um pouco a temática abordada pelo «O Santo Inquérito»?

- Ninguém ousará negar os aspectos negativos dos processos da Inquisição, processos que geralmente eram empreendidos «em nome de Deus e da fé». A Inquisição é um testemunho enfático de como o Senhor Jesus permite que a fraqueza humana seja associada à obra da Redenção ou à história do Cristianismo através dos séculos.

Contudo, para entender devidamente o episódio apresentado pelo «O Santo Inquérito», é oportuno reconstituir brevemente as circuns­tâncias históricas em que se desenrolou a Inquisição na Europa e no Brasil,

1 . Que é a Inquisição?

Já foi abordada esta questão em «P. R.» 8/1957, qu. 9. Aqui colheremos apenas os principais tópicos do assunto.

1) No séc. XI apareceu na Europa uma corrente de pen­samento dualista ou néo-maniqueísta; repudiava a matéria e as instituições visíveis da sociedade da época. Tal corrente era dita «dos Cátaros (puros)» ou «Albigenses» (da cidade de Albi, na França meridional, onde os cátaros tinham sua sede prin­cipal). Os cátaros, por seu dualismo, tomavam uma posição radicalmente antagônica à fé cristã e às instituições eclesiás­ticas; além disto, ameaçavam a ordem civil estabelecida, pois recusavam o matrimônio, a autoridade governamental, o servi­ço militar. . .

2) As primeiras represálias contra os bandos agitadores dos cátaros foram empreendidas espontaneamente pelas populações civis amea­çadas e pelo poder régio ou civil, na França, na Alemanha e nos Países-Baixos. Entrementes, os bispos limitavam se a impor penas espirituais aos hereges (excomunhão, interdito...); mais de uma vez, bispos e sacerdotes tomaram a defesa dos cátaros que o povo perseguia e pretendia punir.

3) Em meados do séc, XII tornou-se insustentável a atitude não­-violenta do clero frente aos cátaros. Os reis, os magistrados e o povo faziam pressão a fim de que as autoridades eclesiásticas colaborassem mais diretamente na repressão do Catarismo.

Em conseqüência, no ano de 1184 foi instituída a Inquisição epis­copal: os bispos, coadjuvados pelo poder civil, mandariam inquirir ou procurar os hereges em suas dioceses; estes uma vez apreendidos, ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes aplicaria a justa sanção (sanção entendida segundo as rudes categorias judiciárias da época).

4) Já que tal procedimento anti-herético se mostrava insuficiente para conter os cátaros, em 1233 foi instituída a Inquisição Papal: o Sumo Pontífice passou a nomear Inquisidores (geralmente domini­canos) que, dotados de amplos poderes, iriam ao encalço dos hereges em todo o território de uma nação (França, Alemanha, Itália...).

5) A Inquisição Papal era regulamentada por instruções e Bulas dos Pontífices que visavam moderar os ânimos e evitar que paixões ou instintos de vingança se exercessem nos processos inquisitoriais. Tais normas, porém, não conseguiram impedir que muitas vezes os Inquisidores e seus oficiais incorressem em graves erros no desem­penho de suas funções.

6) No séc. XIV, com Filipe IV o Belo, da França, começaram a surgir as monarquias absolutistas na Europa. Dificilmente os reis doravante tolerariam que a justiça fosse aplicada em seus territórios segundo outro código legislativo e outros interesses que não os do próprio rei. Consequentemente, o poder régio (que sempre tivera ingerência nos processos da Inquisição) passou a dominar mais e mais os trâmites inquisitórios (não era difícil aos medievais admitir este entrelaçamento de autoridade religiosa e poder civil, já que os reis da época professavam oficialmente a Religião cristã).

Assim a Inquisição foi-se tornando cada vez mais o instrumento que o Estado régio manipulava a fim de impor sua política e atingir seus objetivos nacionalistas; os juizes eclesiásticos e os rótulos reli­giosos que continuavam a marcar a face externa da Inquisição, eram apenas capa para o exercício de planos que no fundo pouco ou nada tinham de religioso. Tenham se em vista, por exemplo, o processo dos Templários empreendido por Filipe IV o Belo (cf. «P. R.» 16/1959, qu. 7) e o de S. Joana d'Arc (cf. «P. R. «8/1958, qu. 9).

7) A partir do séc. XVI, a Inquisição na península ibérica tomou características políticas ainda mais marcantes: foi explo­rada pelos reis de Espanha e Portugal para se libertarem dos judeus e árabes que haviam poderosamente influenciado a vida da península na Idade Média.
















Sobre a Inquisição Espanhola já se encontra um artigo em «P. R. » 38/1961, qu. 6.

Voltemo-nos, pois, para

2. A Inquisição em Portugal e no Brasil

Em 1531 o rei de Portugal D. João III pediu à Santa Sé o estabelecimento da Inquisição em seu reino.

Esta súplica era motivada principalmente pelo desejo de reprimir os judeus e muçulmanos de Portugal. Note-se que o erário público da Coroa no reino luso se achava não raro em situações difíceis; isto movia os monarcas a pretender usurpar os bens dos judeus; para o conseguir, o pretexto religioso pa­recia o mais sumário e eficaz.

O Papa Clemente VII mostrou-se disposto a anuir ao apa­rente zelo religioso de D. João III, contanto que o monarca aceitasse certas cláusulas. Visto, porém, que estas não satis­faziam aos propósitos políticos de D. João III, a tentativa foi frustrada.

A Clemente VII sucedeu o Papa Paulo III (1534), a quem o rei português reiterou o seu pedido. Os trâmites, porém, foram infrutíferos, pois as condições estipuladas pela Santa Sé não atendiam plenamente às intenções anti-judaicas do mo­narca. Novos pedidos, apoiados pelo Imperador Germânico Car­los V, foram levados ao Papa, que julgou finalmente poder instituir a Inquisição em Portugal mediante a Bula «Cum ad nihil magis» de 23/V/1536. Foi nomeado Inquisidor-Mor o bispo de Ceuta, D. Frei Diogo da Silva, que sem demora publi­cou o catálogo de culpas doravante sujeitas à Inquisição: prá­ticas judaicas, maometanas ou luteranas, feitiçarias ou sorti­légios, bigamia...

Durante os dois primeiros anos, a Inquisição foi assaz serena em Portugal, pois Frei Diogo da Silva era tolerante.

A situação, porém, mudou de aspecto quando em 22/VI/1539 foi nomeado Inquisidor Geral o infante D. Henrique, irmão de D. João III, considerado inimigo figadal dos «cristãos-novos» (judeus recém-con­vertidos ao Cristianismo, cuja conversão irritava as autoridades civis, por parecer insincera ou por cancelar o pretenso motivo religioso para a perseguição anti-semita).

Em 1552 foi dado à Inquisição portuguesa o seu primeiro Regi­mento, que estipulava a organização do respectivo tribunal e o seu direito penal. Este era muito semelhante ao que se usava nos tribunais comuns do Reino, embora menos liberal e largamente influenciado pela jurisprudência inquisitorial da Idade Média (havia, além dos Inquisidores, os promotores de justiça, os escrivães, o meirinho, o alcaide do cárcere, o solicitador, o porteiro e os qualificadores, incum­bidos da censura e revisão dos livros). Outros Regimentos seguiram-se em 1613, 1640 e 1774; este último, «o pombalino», foi inspirado pelo Marquês de Pombal e publicado «com o real beneplácito e régio auxílio»!

Como se vê, a Inquisição em Portugal surgiu sob fortes influências do poder civil, que orientaram constantemente o seu rumo até que o próprio Marquês de Pombal (personagem notoriamente anticlerical, cujos sentimentos cristãos eram muito apagados) se tornou mentor da Inquisição. Estes fatos histó­ricos já bastam para evidenciar que não se pode atribuir à própria Igreja, ao clero ou à mentalidade católica o que foi dito ou feito pela Inquisição nas terras de Portugal e de suas colônias. Houve mesmo sérias dissensões entre a Inquisição portuguesa e a autoridade papal, pois esse tribunal atingia não somente judeus e cristãos-novos, mas também «cristãos velhos» e sacer­dotes tidos como delinqüentes em matéria de fé.

Alexandre Herculano, nos seus três volumes «A História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal» descreveu de maneira brilhante, mas um tanto apaixonada, a luta que se acendeu entre Portugal e o Sumo Pontífice a fim de ser instalada a Inquisição em Portugal.

No Reino, a Inquisição estabeleceu seus primeiros tribunais em Évora (1536), Lisboa (1537), Coimbra (1541), Lamego e Tamar (1541). Passou para Goa, na Índia, em 1560 e para a Bahia, no Brasil, em 1579.

Nossa terra não podia deixar de ser atentamente visada pela Inquisição dos reis de Portugal. Com efeito, para o Brasil refugiavam­-se freqüentemente os judeus e os cristãos-novos que conseguissem escapar do tribunal da metrópole; outros, uma vez sentenciados pelos Inquisidores, eram degredados para o Brasil. Esta colônia, vastíssima e despoliciada, dava ensejo a que todos recuperassem a liberdade de ação e, sem receio de repressão imediata, voltassem a professar as crenças ancestrais.

Para controlar a disciplina geral dos eclesiásticos e dos fiéis do Brasil, vinha de vez em quando um Visitador Inquisi­torial. Assim, com o governador Dom Francisco de Souza, veio em nome da Inquisição o licenciado Heitor Furtado de Men­donça (1591): em 28 de julho de 1591 foi promovido o primeiro auto-de-fé no Brasil; o Visitador percorreu, em indagações mi­nuciosas, o Recôncavo Baiano, Pernambuco, Itamaracá, e a Paraíba. Finalmente, instalou uma mesa de Inquisição na Bahia em 1593: esse tribunal, entre outras coisas, discutiu se deviam ser tidos como réus os cidadãos que fornecessem armas aos gentios do Brasil; a solução dada a esta dúvida foi negativa, visto que os índios não faziam guerra aos cristãos por serem cristãos, mas por outros motivos (29 de junho de 1593).

Em 1618 veio ao Brasil como Visitador Inquisitorial o licenciado Marcos Teixeira. A mesa da Inquisição se instalou na cidade do Salvador, desde setembro de 1618 a janeiro de 1619; algumas dezenas de pessoas foram então denunciadas por serem de algum modo coniventes com o judaísmo. Por ocasião dessa visita, foi diversas vezes incriminada a pretensa frouxidão das autoridades eclesiásticas da Bahia: eram tidas como muito tolerantes em relação às práticas de judaísmo.

O próprio Bispo da Bahia, D. Constantino Barradas, faleceu peran­te o tribunal da Inquisição a 1° de novembro de 1618, após ter sido acusado de libertar com facilidade os «réus» que a Inquisição julgava passíveis de penas; censuravam-no também por ter particular amizade com o Pe. Baltazar Ribeiro «nação» isto é de raça de víboras. Além de D. Constantino Barradas, foram denunciados ao Visitador certos sacerdotes de sangue judaico, tidos como culpados de praticas judai­zantes (aliás, El-Rei de Portugal, em carta de 4 de fevereiro de 1603, recomendara ao Bispo do Brasil, com sede na Bahia, que colocasse à frente das paróquias sacerdotes «cristãos velhos», pois constava que a maioria delas estava entregue a sacerdotes «cristãos novos»).

De passagem, pode-se notar que no início do séc. XVII se registrou em Coimbra (Portugal) grande celeuma: entre os cônegos da Sé de Coimbra foram descobertos alguns judaizantes, que chegavam a cons­tituir uma sinagoga sob a direção de um deles, o Cônego outonal Dr. Antônio Homem; este fazia as vezes de sábio canonista e mereceu o titulo de «Praeceptor infelix».

Este fato bem mostra como era tenaz e complexa a resistência dos judeus à política dos monarcas portugueses; essa tenacidade provocava lamentáveis equívocos, os quais por sua vez mais exacer­bavam os ânimos.

Além dos títulos de acusação acima recenseados, sabe-se que tam­bém eram objetos de Inquisição as crenças heréticas e as blasfêmias, as irreverências para com as santas imagens e os lugares sagrados, alguns casos de sodomia e luxúria. Contudo a documentação referente aos trâmites inquisitórios no Brasil é assaz escassa, não permitindo aos historiadores de hoje averiguar de modo exato e até que ponto a Inquisição no Brasil exerceu seus rigores.

Estas notícias são mencionadas no presente artigo porque concorrem para ilustrar como a Inquisição, embora conservasse seus rótulos religiosos e sua linguagem tradicional, era mano­brada por agentes régios ou civis, cujo interesse era servir-se da Religião e das instituições católicas para atingir fins políticos ou nacionalistas. Máxime no séc. XVIII, quando se levantou a campanha geral contra a existência da Companhia Jesus, a Inquisição foi explorada pelas cortes régias, que muitas vezes eram mais absolutistas ou nacionalistas do que fiéis à Santa Sé de Pedro.

O caso de Dona Branca, datado justamente do séc. XVIII na Paraíba, e focalizado por Dias Gomes em «O Sano Inqué­rito», não é propriamente um episódio de perseguição política camuflada sob capa religiosa. É, sim, um caso de pretensas práticas judaicas e de superstição; talvez o fato de Dona Branca ler a Sagrada Escritura em vernáculo lhe tenha angariado a suspeita de ser protestante (já que na época era o protestan­tismo que apregoava o uso da Bíblia, tirando deste Livro Sa­grado suas doutrinas errôneas). Como quer que seja, vê-se que o tribunal que julgou Dona Branca, não foi um tribunal própria e autenticamente eclesiástico; não procedeu segundo a genuína inspiração da Santa Mãe a Igreja Católica, mas, sim, sob a orientação de uma mentalidade muito diluída e turva do ponto de vista religioso.

O Pe. Antônio Vieira e a Inquisição

Será útil observar que mesmo o famoso e benemérito Pe. Antônio Vieira S. J. foi vítima da Inquisição portuguesa.

Em Portugal, esse Religioso pleiteava a causa dos judeus e dos cristãos-novos, a fim de criar no país uma forte organi­zação comercial. Proclamava a liberdade para os israelitas en­carcerados; queria que fossem chamados a Portugal os judeus foragidos, dando-se-lhes a segurança de não serem vexados. Isto, porém, lhe valeu fortes represálias por parte dos agentes da Inquisição e outros magnatas. Quando morreu D. João IV (1656), foi encarcerado nas prisões do dito tribunal. Finalmente a mudança do quadro político da nação veio a favorecer o Pe. Antônio Vieira, o qual assim foi posto em liberdade.

No Brasil, o Pe. Vieira, feito missionário, se bateu sempre, pela palavra e pela ação apostólica, em favor da promoção dos índios contra os escravagistas ou senhores que os queriam redu­zir à servidão. Incorreu, por isto, na inimizade dos habitantes de São Luís do Maranhão. Não podendo permanecer nem no Ma­ranhão nem no Pará, foi devolvido a Portugal. A Inquisição então o aprisionou no cárcere «de Custodia» de Coimbra a 1/X/1665. Censuravam-no, entre outras coisas, por seu judaís­mo, isto é, por causa das suas opiniões sobre os judeus; acusa­vam-no de interpretar falsamente a S. Escritura e de defender as suspeitas profecias de Bandarra. O Pe. Vieira foi então vexado a ponto de mandarem que se ajoelhasse, recitasse o «Pai-Nosso» e outras orações, findas as quais comentaram os juizes : «E tudo disse bem!»

Vieira, assim oprimido, recorreu ao Conselho Geral de Justiça; este porém, não somente confirmou as acusações, mas também mandou tratá-lo como «pessoa de cuja qualidade de sangue não consta ao certo» ... O «Padre Grande» permaneceu recluso em uma casa religiosa até o dia em que a queda do rei D. Afonso VI (1/1/1668) causou reviravolta na política de Portugal. Foi então libertado; não conseguindo, porém, modi­ficar os trâmites inquisitórios de Portugal, partiu para Roma (15/VIII/1669). Empenhou-se aí por obter uma sentença favo­rável a si nas suas desavenças com os Inquisidores de sua pátria; mas pouco conseguiu por causa da influência de mag­natas de Portugal que tinham interesse em prestigiar os trâ­mites habituais da Inquisição no reino luso. Em Roma, a rainha Cristina da Suécia (que desde a sua abdicação lá residia) nomeou-o seu pregador. Finalmente, por ordem de D. Pedro de Portugal, que se ligara aos inimigos de Vieira, o denodado jesuíta teve que abandonar a Cidade Eterna (23/V/1675); antes de partir, porém, obteve do Papa um Breve que o subtraía à jurisdição da Inquisição portuguesa !...

Regressando a Portugal, o Pe. Vieira viu-se cercado de ódios e calúnias, de modo que embarcou de novo para o Brasil em janeiro de 1681, onde viveu ainda pouco mais de quinze anos.

O caso do Pe. Vieira é mais um testemunho flagrante de como se deve distinguir entre a Inquisição e a autoridade oficial da Igreja. Realmente muitos e muitos dos feitos da Inquisição, no decurso da sua longa história, não podem ser atribuídos à S. Igreja; são, antes, expressões de lutas políticas, nas quais o espírito genuinamente cristão foi quase sufocado por tendên­cias partidárias.

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