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sábado, 12 de maio de 2007

Papa: João Paulo II aos camponeses

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 250/1980)


Em síntese: No Recife, aos 7/07/80, o S. Padre João Paulo II pro­feriu uma homilia aos camponeses na qual propôs a seguinte escala de valores: a terra e o trabalho na terra são para o homem (todo homem), e o homem é para Deus. Isto exige conversão interior e disciplina da parte dos homens: disciplina que procurará moderar os interesses egoístas e cobiçosos, em favor do bem comum ou do acesso de todos aos bens da terra. Esta disciplina é chamada pobreza em espírito: implica desapego ou desprendimento interior, de modo que aqueles que possuem bens mate­riais os saibam pôr ao serviço do próximo, e aqueles que não os possuem não se tornem gananciosos ou inspirados pelo ódio e a violência.

Na perspectiva acima, o trabalho, especialmente o trabalho agrícola, deixa de ser mero fator de produção para tornar-se obra de amor a Deus e ao próximo, serviço aos irmãos, fonte de honra e alimento da oração. O trabalho vem a ser colaboração com o Criador e remate da obra da criação, que assim assume as feições que Deus lhe destinou desde todo e sempre: as plantas, os animais e os homens, em suma cada criatura em seu escalão, darão glória ao Criador num concerto harmonioso e universal.

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Comentário: Em sua visita pastoral ao Brasil, o S. Padre João Paulo II dirigiu-se às mais diversas categorias de pessoas e enfrentou os mais árduos problemas sociais do país numa perspectiva de fé, equilíbrio e amor fraterno. Procurou assim dizer a verdade, sem ferir quem quer que seja, antes deixando os ânimos serenados e dispostos a melhorar...

Dentre as várias alocuções de S.Santidade escolhemos algu­mas especialmente significativas, cujo conteúdo irá resumido em PR e acompanhado de breve comentário em apêndice. Procura­remos guardar, tanto quanto possível, a expressão literal uti­lizada por S. Santidade.

Segue-se neste número o teor da homilia intitulada «A terra é dom de Deus» proferida no Recife aos 7/07/80.

I. A ALOCUÇÃO

O S. Padre iniciou a sua homilia saudando todos os cam­poneses do Brasil representados pela assembléia que partici­pava da Missa no Recife. Desempenham papel de enorme im­portância na sociedade do Brasil, papel que se exerce em situa­ções de marginalização, analfabetismo, insegurança... Daí o interesse de S. Santidade pelos trabalhadores do campo, a quem o Papa deseja dedicar uma palavra de estímulo e reconforto, inspirada tão somente pelos princípios da fé. A Igreja só dispõe da força do Espírito Santo e aguarda pleno respeito à autono­mia do domínio temporal; mas, consciente de suas responsabi­lidades, não quer omitir-se quando se trata de fazer que a vida humana se torne cada vez mais humana.

1. A terra e dom de Deus

A terra é dom de Deus outorgado a todos os seres huma­nos, que Ele quer reunidos em uma só família. Cf. Gn 1, 28s.

Por conseguinte, não corresponde aos desígnios de Deus administrar este dom de modo que os seus benefícios aprovei­tem somente a alguns poucos, ficando os outros, a imensa maio­ria dos homens, excluídos ou mesmo injustamente condenados a carência, pobreza e marginalização.

Não há dúvida, o direito de propriedade é legítimo, mas tem finalidade social, ou seja, deve servir ao bem comum; este prevalece sobre vantagens, comodidades e mesmo sobre algu­mas necessidades não primárias de origem particular.

«Não é, pois, admissível que, no desenvolvimento geral de uma sociedade, fiquem excluídos do verdadeiro progresso digno do homem precisamente os homens e as mulheres que vivem em zona rural, aqueles que estão prontos a tornar a terra pro­dutiva graças ao trabalho de suas mãos e que têm necessidade da terra para alimentar a família».

Disto se segue a necessidade de

2. Justa legislação

Impõe-se uma legislação justa em matéria agrária, de modo que sirva ao bem de todos os homens e não apenas a interesses de minorias ou de indivíduos. Essa legislação justa há de ser acompanhada por sincera conversão do homem ao homem na sua plenitude e transcendência.

Com outras palavras: a organização social está a serviço do homem, e não ao contrário. Deve, pois, assegurar ao homem do campo condições adequadas para que possa permanecer em sua terra e aí encontrar os meios de viver conforme a dignidade humana; empurrar o homem rural para o êxodo incerto em direção das grandes metrópoles é desrespeitar os seus direitos de homem e de filho de Deus.

«Os trabalhadores da terra, como os trabalhadores de qualquer outro ramo de produção, são e devem permanecer sempre, aos próprios olhos e aos olhos dos outros,... antes de tudo pessoas humanas: devem ter as possibilidades de ‘ser mais’ homem e, ao mesmo tempo, ser tratados de acordo com a sua dignidade humana. Sendo o trabalho para o homem, e não o homem para o trabalho, é exigência fundamental... que ele possa tirar do mesmo trabalho os meios necessários e suficien­tes para fazer frente, com decência, às próprias responsabilida­des familiares e sociais.

Jamais o homem é mero instrumento de produção».

3. Pobreza e riqueza

A propósito de pobreza e riqueza, vem ao caso a parábola do ricaço e de Lázaro (Lc 16,19-31). «Nesta parábola Cristo não condena o rico porque é rico... Ele condena fortemente o rico que não leva em consideração a ... penúria do pobre Lá­zaro... Cristo não condena a simples posse de bens materiais. Mas suas palavras mais duras dirigem-se para aqueles que usam sua riqueza de maneira egoísta, sem se preocupar com o próximo...»

Cristo apregoa a bem-aventurança dos que são pobres em espírito (cf. Mt 5,3). Este tipo de pobreza deve afetar tanto aqueles que possuem como os que não possuem bens materiais.

Assim são pobres em espírito e, por conseguinte, bem-aven­turados os ricos que sabem desapegar-se de suas posses e de seu poder, para colocá-los a serviço dos necessitados, para se comprometer na busca de uma ordem social justa... a fim de que os marginalizados possam encontrar lugar à mesa da famí­lia humana.

Também são pobres em espírito e bem-aventurados aque­les que, carecendo de bens materiais, conservam no entanto a sua dignidade de homem. Bem-aventurados os pobres que, por causa de Cristo, têm especial sensibilidade pelo irmão que pa­dece necessidade, pelo próximo que é vitima de injustiças, que sofre privações como a fome, a falta de emprego, a impossibili­dade de educar dignamente os seus filhos.

No que diz respeito aos bens de primeira necessidade - alimento, vestuário, habitação, assistência médico-social, ins­trução de base, formação profissional, transporte, informação, possibilidades de se distrair, vida religiosa - impõe-se que não haja estratos sociais privilegiados. Que entre os ambientes urba­nos e ambientes rurais não se verifiquem desigualdades clamo­rosas, e, quando estas se criam, haja uma pronta aplicação dos meios adequados para que sejam eliminadas ou reduzidas até onde for possível. Nisto todos e cada um hão de sentir-se com­prometidos: pessoas, grupos sociais e poderes públicos a todos os níveis.

4. Direito de participar

«Aos trabalhadores da terra, como aos demais trabalhado­res, não pode ser negado, por nenhum pretexto, o direito de participação e comunhão, com senso de responsabilidade, na vida das empresas e nas organizações destinadas a definir e salvaguardar os seus interesses, e mesmo na árdua e perigosa caminhada rumo à indispensável transformação das estruturas da vida econômica, sempre em favor do homem.

Tal presença ativa dos trabalhadores nos diversos níveis da sua sociedade profissional supõe sempre uma economia a serviço do homem. Esta, por sua vez, supõe uma prévia
con­versão das mentes e dos corações ao homem, à verdade do homem.

5. Exortação final

O trabalho, além de ser meio de ganhar a vida, é fonte de honra e é oração. Isto se torna válido especialmente para os trabalhadores da terra, chamados ao contato com a natureza e a colaborar diretamente com Deus Criador para que este pla­neta seja cada vez mais conforme aos desígnios de Deus; seja o ambiente desejado para todas as formas de vida: a vida das plantas, a vida dos animais e a vida, sobretudo, dos homens. Façamos, pois, tudo o que esteja ao nosso alcance para que, servindo ao homem, «toda a terra adore a Deus, o celebre e cante o seu nome (SI 65,4) ».

É notório que no Brasil se estão estudando iniciativas de vasto alcance para o setor agrícola. Queira Deus que o huma­nismo cristão as ilumine sempre!

«Por vocês e com vocês, queridos irmãos camponeses, em seu nome e em nome de Deus eu peço aos outros nossos irmãos: que se procure a colaboração e a concórdia; que todos os res­ponsáveis e interessados pelo bem de cada homem - poderes públicos a nível nacional, estadual e local, grupos, organizações e todos os homens de boa vontade, com a específica contribui­ção da Igreja no desempenho da própria missão – busquem e apliquem as medidas reais, adequadas e eficazes, para satis­fazer aos direitos do homem do campo, para ajudá-lo. Nisto, quem tem mais, mais se deve sentir obrigado a cooperar.

Somos a família dos filhos de Deus. Como irmão, quero dizer-lhes, amados camponeses do Brasil, que vocês valem muito. Conservem as suas riquezas humanas e religiosas: o amor da família, o sentido da amizade e da lealdade, a solida­riedade com os mais necessitados entre vocês, o respeito pelas leis e por tudo o que é legítimo na convivência civil, o amor à boa harmonia e à paz, a confiança em Deus e a abertura para o sobrenatural, a devoção a Nossa Senhora, etc. Por Ela, por Nossa Senhora aqui, diante de uma Igreja que lhe é dedicada, sob um título para mim tão querido - Nossa Senhora do Carmo - peço a Deus que a todos assista, conforte e ajude.

Com a minha Bênção Apostólica!»

II. REFLEXÕES

O que mais chama a atenção nesta homilia de João Paulo II, é a escala de valores que propõe: a terra e o trabalho na terra são para o homem (todo homem); e o homem é para Deus. Isto exige conversão interior e disciplina da parte dos homens: disciplina que procurará moderar os interesses egoís­tas e cobiçosos, em favor do bem comum ou do acesso de todos aos bens da terra. Esta disciplina é chamada pobreza em espírito: significa desapego ou desprendimento interior, de modo que aqueles que possuem bens materiais, os saibam pôr ao serviço do próximo, e aqueles que não os possuem não se tornem gananciosos ou inspirados pelo ódio e a violência.

Na perspectiva acima o trabalho, especialmente o traba­lho agrícola, deixa de ser mero fator de produção, para tor­nar-se obra de amor a Deus e ao próximo, serviço aos irmãos, fonte de honra e alimento da oração. O trabalho vem a ser cola­boração com o Criador e remate da obra da criação, que assim assume as feições que Deus lhe destinou desde todo o sempre: as plantas, os animais e os homens, em suma cada criatura em seu escalão, darão glória ao Criador num concerto harmonioso e universal.

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