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quarta-feira, 30 de maio de 2007

Inquisição: a inquisição espanhola (I)

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 38/1961)

A. F. (São Paulo, )

«Como se pode justificar a Inquisição Espanhola dentro da história da Igreja?

Em particular, a atividade do Inquisidor-Mor Tomaz de Torquemada não constitui flagrante oposição ao espírito cristão?»

O tema «Inquisição» já foi abordado em «P. R.» 8/1957, qu. 9. Dissemos então que a Inquisição constitui um acontecimento complexo, que não pode ser devidamente considerado se não se têm em vista as suas três modalidades: a Inquisição Medieval (séc. XII/XV), a Inquisição Romana (séc. XVI/XVII) e a Inquisição Espanhola (séc. XV/XIX).

Ao passo que a Inquisição Medieval e a Inquisição Romana obedeceram mais ou menos ao mesmo regime, a Inquisição Espanhola exerceu sua atividade sob a influência de fatores próprios. Visto já ter sido estudada a Inquisição Medieval no referido artigo de «P. R.», limitar-nos-emos aqui ao que diz respeito à Inquisição Espanhola.

Em primeiro lugar, tentaremos reconstituir o quadro histórico e a mentalidade que caracterizaram os Inquisidores da Espanha. A seguir, deter-nos-emos sobre a figura de Torquemada em particular. Por fim, procuraremos formular um juízo sobre o assunto.

1. A situação étnica e religiosa da Espanha no séc. XV

1. Em meados do séc. XV a Espanha apresentava uma situação política assaz complexa.

A mor parte do território fora libertada da ocupação árabe (muçulmana) que desde o séc. VIII aí se exercia. Os califas árabes dominavam apenas na região de Granada, ao sul do país. Contudo os soberanos dos pequenos reinos da península não se entendiam entre si, de modo que a obra da Reconquista se achava estagnada desde a tomada de Sevilha em 1248 por obra de Fernando III o Santo.

Em 1479, os monarcas Fernando de Aragão e Isabel de Castela, tendo-se previamente unido em matrimônio, começa­ram a reinar conjuntamente sobre todo o território livre da Espanha, pondo termo às rivalidades sangrentas que solapavam os esforços de unificação nacional. A Espanha entrou então numa fase nova da sua história, fase selada pela vitória das tropas de Fernando e Isabel sobre os árabes em Granada no ano de 1492. Nesta data tendo sido extinto o último reduto árabe, não restava mais poder estrangeiro legalmente insta­lado em território espanhol. Contudo a obra de unificação estava longe de se achar consumada: não somente o fator étnico ou racial dividia entre si a população; também o ele­mento religioso diversificava os cidadãos; havia, sim, em meio à grande maioria de cristãos da península, grupos muito influ­entes de judeus e de muçulmanos. Este fato mereceu a atenção dos reis Fernando e Isabel, os quais resolveram empenhar zelo ferrenho (inspirado, sem dúvida, por motivos nacionais, mas corroborado por têmpera religiosa) a fim de absorver ou (caso isto não fosse possível) eliminar os elementos hetero­gêneos da população.

2. Não se poderia, porém, descrever a ação dos monarcas contra judeus e muçulmanos sem se reconstituir brevemente o significado destes dois grupos étnicos dentro da Espanha medieval.

a) Os Judeus. Durante a Idade Média foram sempre assaz numerosos no território espanhol: «uma terça parte dos cidadãos e comerciantes de Castela», escrevia Vincenzo Quirini, embaixador de Veneza no séc. XV; somente Toledo, a capital de Castela, contava mais de doze mil israelitas e possuía várias sinagogas de incontestá­vel gosto artístico.

Nos séc. XII/XIV os judeus gozavam de liberdade e mesmo de estima nos reinos cristãos da península. É o historiador israelita Theodor Graetz (1817-1891) quem observa:

«Sob Afonso VIII o Nobre (1166-1214), os judeus ocuparam fun­ções públicas... José ben Salomão ibn Schoschan, que tinha o título de príncipe, homem rico, generoso, sábio e piedoso, era muito con­siderado na corte e junto aos nobres... O rei, casado com uma princesa inglesa, tivera durante sete anos uma favorita judaica, chamada Rahel e, em vista de sua beleza, cognominada Formosa. Os judeus de Toledo ajudaram energicamente o monarca na sua luta contra os mouros» (Graetz, Histoire des juifs IV 118).

Em fins do séc. XIV, porém, e no decurso do séc. XV, os israe­litas tornaram-se objeto de perseguições; irritavam profundamente o povo por suas riquezas, em grande parte arrecadadas à custa de empréstimos a juros elevadíssimos (podiam chegar a 40%), e por seu luxo tido como arrogante. Registraram-se primeiramente tumul­tos e linchamentos populares contra os judeus, desordens estas que os reis de Castela, Navarra e Aragão procuraram reprimir. A situa­ção, porém, se tornou insustentável em meados do séc. XV, quando não poucos judeus, desejosos de conservar suas posições financeiras e políticas, pediam o batismo cristão, conservando não obstante a fé judaica e observando, no recôndito de seus domicílios, as práticas talmúdicas. Essa onda de conversões insinceras recrudesceu princi­palmente em Castela, quando o jovem rei João II declarou os judeus incapazes de exercer alguma função pública (1468) ; deram-se então milhares de conversões aparentes, ocasionando um tipo de cidadãos que o povo chamava «Marranos» (palavra que jogava ao mesmo tempo com a expressão semita «Maran atha», O Senhor vem, e com o termo castelhano «marrano», leitão).

«Embora tivessem que participar dos sacramentos, (os marranos) esforçavam-se o mais possível por se lhes subtrair... No tribunal da penitência, não confessavam coisa alguma ou só acusavam faltas leves; mandavam batizar seus filhos, mas, ao sair das cerimônias, lavavam cuidadosamente as partes do corpo ungidas pelo santo crisma. Alguns rabinos iam secretamente dar-lhes instrução... Imo­lavam, segundo os seus ritos, animais e axes que lhes serviam de alimento... Só comiam carne de porco quando constrangidos a isso» (M. Mariejol, L'Espagne sous Fernand et Isabelle, pág. 45).

Ostentando a aparência de bons cristãos, os marranos chegavam a ocupar elevados cargos na Igreja, infiltrando-se até mesmo no alto clero; conta-se o caso (até que ponto será verídico?) de um bispo de Calahorra, o qual, indo a Roma, comia carne às sextas-feiras (coisa lá proibida), rezava em hebraico segundo rito judeu, recusava pronunciar o nome de Cristo, e ainda espancava seus sacerdotes caso estes lhe quisessem chamar a atenção!

A hipocrisia dos marranos era não raro denunciada pelos seus correligionários de raça judaica que, tendo sinceramente abraçado a fé de Cristo, haviam recebido ordens sacerdotais na Igreja ou queriam dar provas de sua autêntica conversão. Em conseqüência, os marranos chegaram a se reunir em sociedades secretas, de tipo maçônico, o que os tornava ainda mais suspeitos e antipáticos ao povo. Este os tinha na conta de verdadeiro perigo para o bem comum, tanto do ponto de vista religioso como do ponto de vista civil (a causa religiosa e a causa nacional pareciam, no caso, solidárias entre si).

b) Os muçulmanos. Quando os árabes maometanos ocuparam a península ibérica no séc. VIII, deram início a uma política de tole­rância para com o povo cristão, que cultivava o solo e que conse­qüentemente passou a ser chamado «moçárabe» (do árabe must'rib, «arabizado»). Diz-se mesmo que no séc. XV rara era a família cristã que não contasse entre os seus antepassados um discípulo de Maomé.

Nos territórios que aos poucos iam sendo reconquistados, os reis cristãos se mostravam, por sua vez, tolerantes para com os árabes, reconhecendo a estes liberdade religiosa. Assim é que notável popu­lação de muçulmanos vivia nas cidades de Valença, Toledo, Sevilha, etc., gozando de grande influência na vida pública, pois os árabes continuavam a usufruir das vantagens econômicas que possuíam antes da Reconquista; conseguiam mesmo ampliar essas vantagens median­te intenso comércio com seus correligionários do sul da Espanha, da África do Norte e da bacia do Mediterrâneo. Eis, porém, que no séc. XIV alguns motins de árabes prepotentes contra os governos cristãos provocaram, da parte destes, uma série de medidas que visavam doravante conter a influência política e social dos muçul­manos, influência que se exercia principalmente pela indústria, o comercio e os empréstimos a juros.

Visando então libertar-se da coibição e do controle dos soberanos espanhóis, não poucos maometanos abraçaram a fé católica, dando assim origem a outro tipo de cidadãos ambíguos, popularmente deno­minados «mouriscos». Convertendo-se, ao menos em aparência, os árabes passavam a gozar dos mesmos direitos civis e religiosos que os cristãos, exceto o direito de acesso ao episcopado (contudo no séc. XV contavam-se vários bispos espanhóis convertidos do islamismo). Todavia as conversões interesseiras não escapavam à observação do público, que se mostrava infenso à hipocrisia dos “mouriscos”; as intrigas e maquinações destes, tramadas como que em sociedades secretas, vinham a ser inegavelmente mais perigosas para o bem comum do que as atividades dos muçulmanos confessos.

Na situação geral que acaba de ser descrita, compreende­-se que aos poucos as autoridades dos reinos cristãos da Espa­nha tenham percebido a necessidade de dar busca ou «inquisi­ção» aos cidadãos ambíguos - marranos e mouriscos. Era, de um lado, a segurança pública que o exigia dos poderes civis; doutro lado, já que a pureza da fé cristã estava em jogo, também as autoridades eclesiásticas deviam mostrar-se inte­ressadas em tal gênero de indagação ou inquisição. Em uma palavra: para a Espanha cristã, a luta contra a falsidade religiosa, contra as maquinações secretas de cidadãos ambi­ciosos dissimulados sob rótulos religiosos, se apresentava como questão de vida ou morte. Destarte Estado e Igreja, interesses civis e interesses religiosos se entrelaçavam espontaneamente para dar origem ao famoso fenômeno da «Inquisição Espa­nhola».

É a este que vamos agora voltar diretamente a nossa atenção.

2. Surto e procederes da Inquisição Espanhola

Os reis Fernando e Isabel, visando a plena unificação de seus domínios, tinham consciência de que existia uma instituição ecle­siástica - a Inquisição - oriunda na Idade Média com o fim de reprimir um perigo religioso e civil dos séc. XI/XII - a heresia cátara ou albigense -, perigo ao qual bem se assemelhavam as atividades dos marranos e mouriscos na Espanha do séc. XV.

1. A Inquisição Medieval, que nunca fora muito ativa na península ibérica, achava-se aí mais ou menos adormecida na segunda metade do séc. XV... Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1478 foi descoberta em Sevilha uma conspiração de marranos, a qual, dadas as suas intenções nitidamente anticristãs, muito exasperou o público. Então lembrou-se o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a reavivasse sobre novas bases, mais promissoras, confiando sua orientação ao monarca espanhol.

Sixto IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos reis da Espanha o Breve de 1º de novembro de 1478, pelo qual «conferia plenos poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou três Inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomen­dáveis por sua prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de costu­mes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em Teologia, doutores ou licenciados em Direito Canônico, os quais deveriam passar de maneira satisfatória por um exame especial. Tais Inquisido­res ficariam encarregados de proceder contra os judeus bati­zados reincidentes no judaísmo e contra todos os demais culpa­dos de apostasia. O Papa delegava a esses Oficiais eclesiásticos a jurisdição necessária para instaurar os processos dos acusados conforme o Direito e o costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a destituir tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse oportuno» (L. Pastor. Histoire des Papes IV 370).

Note-se bem que, conforme este edito, a Inquisição só estenderia sua ação a cristãos batizados, não a judeus que jamais houvessem pertencido à Igreja; a instituição era, pois, concebida como órgão promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como instru­mento de intolerância em relação às crenças não-cristãs.

Ora, apoiados na licença pontifícia, os reis de Espanha, aos 17 de setembro de 1480 nomearam Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel Morillo e Juan Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes seculares. Os monarcas promulgaram também um compêndio de «Instruções», enviado a todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código da Inquisição, a qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado civil.

Os Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geral­mente com grande energia. Parecia que a Inquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais procuravam atingir criminosos mesmo de categoria meramente política.

Em breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Espanha, mostran­do-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia em seu reino e baixando instruções de moderação para os juizes tanto civis como eclesiásticos.

Merece especial destaque neste particular o Breve de 2 de agosto de 1482, que o Papa, depois de promulgar certas regras coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras:

«Visto que somente a caridade nos torna semelhantes a Deus..., rogamos e exortamos o Rei e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é característico ter sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indul­gentes para com os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e imploram a misericórdia!»

Contudo, apesar das freqüentes admoestações pontifícias, a In­quisição Espanhola ia-se tornando mais e mais um órgão poderoso de influência e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto, basta lembrar o seguinte: a Inquisição no território espanhol ficou sendo instituto permanente durante três séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisição Medieval, a qual foi sempre intermitente, tendo em vista determinados erros oriundos em tal e tal localidade. A manutenção permanente de um tribunal inquisitório impunha

avulta­das despesas, que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se deu na Espanha: os reis atribuíam a si todas as rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens confiscados) e paga­vam as respectivas despesas; conseqüentemente alguns historiadores, referindo-se à Inquisição Espanhola, denominaram-na «Inquisição Régia»!

A fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor característico do mesmo.

Os reis Fernando e Isabel visavam corroborar a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo de Roma... Conceberam então a idéia de dar à instituição um chefe único e plenipoten­ciário - o Inquisidor-Mor -, o qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo, propuse­ram à Santa Sé um religioso dominicano, Tomaz de Torque­mada («a Turrecremata», em latim), o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os ter­ritórios de Fernando e Isabel. Procedendo à nomeação, escrevia o Papa Sixto IV a Torquemada:

«Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela e Leão, nos suplicaram para que te designássemos como Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim como no principado da Catalunha» (Bullar. Ord. Praedicatorum III 622).

O gesto de Sixto IV só se pode explicar por boa fé e confiança. O ato era, na verdade, pouco prudente...

Com efeito, a concessão benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos avanços destes: os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor já não foram no­meados pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo com critérios nem sempre louváveis). Para Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de nomearem os Inquisidores regionais, subordinados ao Inquisidor-Mor.

Mais ainda: Fernando e Isabel criaram o chamado «Con­selho Régio da Inquisição, comissão de consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que a controlar os processos da Inquisição; gozavam de voto deliberativo em questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de Direito Canônico.

Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o famoso processo que os Inquisidores mo­veram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza, de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito anos contínuos a Inquisição Espa­nhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao Concílio ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do séc. XVI.

Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1759-1788) constitui outra figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos estudando. Colocou-se peremptoriamente entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a 12 horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou, declarando:

«O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo; aceito agora os agradecimentos do tribunal; protegê-lo-ei sempre, mas não se esqueça ele desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer tentativa de desobediência» (cf. Desdevises du Dezart, L'Espagne de l'Ancien Régime. La Société 101s).

A história atesta outrossim como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que visavam defender os acusados frente à dureza do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da Inquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico.

Assim aos 2 de dezembro de 1530, Clemente VII conferiu aos Inquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os delitos de heresia e apostasia; destarte o sacerdote poderia tentar subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1546, Paulo III declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18 de janeiro de 1556, Paulo IV autori­zava os sacerdotes a absolver em confissão sacramental os mouriscos­

Compreende-se que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o que se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução, o Imperador Napoleão I, intervindo no governo da nação, aboliu a Inquisição Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1808. O rei Fernando VII, porém, restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam colabo­rado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do absolutismo de Fernando VII, restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos das Cortes de Cadiz foi a extinção definitiva da Inquisição em 1820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma situação humilhante para a Sta. Igreja.

Interessa-nos agora focalizar de mais perto

3. A figura de Tomaz de Torquemada

Tomaz de Torquemada nasceu em Valladolid (ou, segundo outros, em Torquemada) no ano de 1420. Fez-se Religioso dominicano, exer­cendo por 22 anos o cargo de Prior do convento de Santa-Cruz em Segovia. Já aos 11 de fevereiro de 1482 foi designado por Sixto IV para moderar o zelo dos Inquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou Primeiro Inquisidor de todos os territórios de Fernando e Isabel.

Extremamente austero para consigo mesmo, o frade dominicano passou a usar de semelhante severidade nos seus procedimentos judiciários. Dividiu a Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham como sedes respectivas as cidades de Sevilha, Córdova, Jaen e Villa (Ciudad) Real. Em 1484 redigiu, para uso dos Inquisidores, uma «Instrução», opúsculo que propunha normas para os processos inquisitoriais, inspirando-se em trâmites já usuais na Idade Média; esse libelo foi completado por dois outros do mesmo autor, que vieram a lume respectivamente em 1490 e 1498.

O rigor de Torquemada foi levado ao conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como dizem algumas fontes históricas, pensou então em destituí-lo de suas funções; só não o terá feito por deferência à corte da Espanha. O fato é que o Pontífice houve por bem diminuir os poderes de Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de junho de 1494).

Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas pelos cronistas são tão pouco coeren­tes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto. O historiador J. A. Llorente (1817/18), por exemplo, no tomo I da sua «Histoire critique de 1'Inquisition d’Espagne», atribui a Torque­mada 8.800 sentenças de morte (das quais 6.500 terão sido executadas apenas «em efígie», ou seja, sobre um boneco representante do réu); além disso, Torquemada haverá proferido 90.000 sentenças de infâmia, prisão perpétua, confiscação de bens, exclusão dos cargos públicos, etc.. - Ora no tomo IV da mesma obra o mesmo autor fornece outras cifras! ...

Como quer que seja, Tomaz de Torquemada ficou sendo, para certos escritores, a personificação da intolerância religiosa, varão de mãos sanguinolentas e foco de terror para toda a Espanha. Os histo­riadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa maneira de conceituar o Inquisidor-Mor; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julgam muitos que este Religioso foi em consciência movido por sincero e ardente amor à verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida pelos falsos cristãos; daí o zelo extremado com que procedeu, incutindo, sem dúvida, espanto aos seus súditos. A retidão de intenção de Torquemada ter-se-á traduzido de maneira pouco feliz.

De resto, o seguinte episódio contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, da alma do frade dominicano.

Em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da Inquisição a proposta de se impor aos muçulmanos ou a conversão ao Cristianismo ou o degredo para o estrangeiro. Torquemada, então, opôs-se veemen­temente a essa medida, pois queria conservar o princípio, sempre em vigor na Cristandade, de que a conversão à verdadeira fé não pode ser extorquida pela violência; a Inquisição deveria, por conse­guinte, restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e somente estes, em virtude do seu Batismo, tinham um compromisso com a Santa Igreja. Como se vê, Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto.

Exerceu suas funções até a morte, aos 16 de setembro de 1498.

4. Conclusão

Após quanto acaba de ser considerado, parecem muito oportunas as palavras de Daniel-Rops (autor católico que não deixa de ser por vezes mordaz)

«A respeito do que foi realmente a obra da Inquisição Espanhola, só se pode falar usando de extrema prudência. Nesse setor, a imagi­nação popular muito tem divagado» (L'Église de la Renaissance et de la Réforme I 265).

Já em «P. R.» 8/1.957, qu. 9 procuramos formular um juízo sobre a Inquisição como tal.

Referimos agora a quanto aí foi dito. Evitando repetições, aqui lembraremos que, para conceituar devidamente essa instituição, é preciso distinguir entre as normas que a regiam, e as atitudes práticas dos oficiais encarregados de executar tais normas.

Os oficiais terão cometido abusos, cedendo ora à sua própria fraqueza humana, ora à ingerência excessiva do poder civil (frisemos que cimente o Senhor Deus pode dizer até que ponto foram eles em consciência culpados de desmandos). A Santa Igreja, Esposa de Cristo sem mancha nem ruga (cf. Ef 5,27), com a qual nenhum de seus membros se identifica plenamente, é a primeira a apontar e lamentar os abusos inquisitoriais que se tenham cometido em seu nome. Por conse­guinte, o proceder repreensível de certos Inquisidores não deve surpreender o estudioso nem, por outro lado, depõe contra a santidade da Igreja, pois em absoluto não foi inspirado pelas diretivas oficiais da Esposa de Cristo. Analisando essas direti­vas, verificamos, sem dúvida, que parecem estranhas a um observador moderno; eram, porém, perfeitamente justificadas à luz dos princípios e da mentalidade geral que norteavam os cristãos dos séc. XI-XV

Para eles, com efeito, a alma era uma realidade; a fé, considerada como esteio da vida da alma, constituía um verdadeiro bem, constituía mesmo o principal dos bens de que alguém podia e devia usufruir na «Cidade de Deus». Por conseguinte, qualquer ameaça infligida à verdade da fé representava a seus olhos um dos mais graves delitos concebíveis, delito contra o qual não se deveria proceder com menos rigor do que contra o homicídio e os escândalos morais...

Estes princípios, professados durante toda a Idade Média, foram particularmente aguçados pelas circunstâncias históricas em que se viu o povo espanhol em fins do séc. XV e no decorrer do séc. XVI: a causa religiosa ou o bem da fé parecia então repousar sobre a causa nacional ou a unificação da Espanha. A luta contra os árabes e judeus, principalmente quando estes se dissimulavam falsamente sob o título de cristãos, devia então aparecer como autêntica obrigação de consciência (não interessa aqui elucidar até que ponto tal cons­ciência estava bem formada ou não; importa apenas reconstituir a maneira subjetiva como as consciências cristãs do séc. XVI deviam ver a Inquisição Espanhola, pois sabemos que a moralidade, boa ou má, de uma ação é diretamente avaliada pela consciência subjetiva de quem age). É justamente o ponto de vista da consciência subjetiva dos homens de Espanha que Daniel-Rops assim formula: «Certo é que o povo espanhol não somente aceitou, mas quis e louvou a In­quisição qual manifestação de fé ardente até o heroísmo» (ob. cit. 266).

E, para não nos alongarmos em considerações teóricas, citamos aqui um testemunho que constitui eloqüente confirmação das pala­vras de Daniel-Rops e de quanto acabamos de ponderar:

Um estrangeiro, ou seja, o embaixador Quirini, de Veneza, escrevia a propósito da situação na Espanha:

«Ainda que não fosse por outro motivo, já em virtude da Inqui­sição, o rei Fernando e a rainha Isabel mereceram junto de Deus e dos homens um louvor eterno» (citado por Daniel-Rops, ob. cit. 266 n. 31).

O estudioso contemporâneo talvez não diga o mesmo. . . Lembre-se, porém, de que as diversas gerações humanas só podem ser adequadamente julgadas à luz dos elementos pró­prios que concorriam para formar o seu espírito. E, conseqüen­temente, procure entender a Inquisição como o homem de outrora a entendia; assim escandalizar-se-á menos e aprovei­tará mais do estudo da história! Principalmente, porém, tenha por certo que a famigerada instituição não depõe contra a santidade da Igreja, pois não foi Esta quem moveu os homens aos abusos. Passada a celeuma da Inquisição, a Igreja continua a ser a Esposa de Cristo sem mancha nem ruga, na qual cada um se santifica ainda hoje, desde que obedeça à sua voz, inde­pendentemente da santidade ou dos vícios dos irmãos na fé!

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